Acervo 4. Cerâmica

Pequeno pote baixo de cerâmica circular com superfície áspera . Apresenta partes escurecidas e aparenta estar quebrada na borda superior à direita do observador.

 

Na arqueologia, os grupos Jê Meridionais são frequentemente identificados pela presença da cerâmica Taquara/Itararé e certos tipos de sítios arqueológicos, especialmente aqueles em que ocorrem estruturas subterrâneas e outros tipos de estruturas arquitetônicas construídas a partir da movimentação de terra. No litoral, esta cerâmica pode ser encontrada no topo dos sambaquis ou nos sítios rasos.

Os artefatos cerâmicos estão presentes em praticamente todo o território ocupado por esses grupos e, apesar de possuir variações regionais, carregam consigo semelhanças técnicas e culturais compartilhadas, as quais permitem sua identificação. São comuns vasilhames pequenos e sem elementos decorativos, como este na imagem, encontrado na Ilha do Arvoredo. A manufatura das peças podia ser feita a partir de blocos modelados ou roletes de argila. Quando há acabamento externo, é frequente se observar o processo de alisamento e a brunidura (polimento da peça que a deixa com aspecto lustroso), além de decorações plásticas que envolviam a impressão de unhas e incisões ponteadas.

O recipiente cerâmico encontrado na Ilha do Arvoredo, distante 11 Km da Ilha de Santa Catarina, chama a atenção para três atividades importantes: a produção de canoas, o uso de embarcações como meio de transporte e, consequentemente, a arte de remar e conhecer os eventos meteorológicos através da observação da natureza. Como uma única peça pode nos dar tantas informações!

Mas pequenos fragmentos cerâmicos também podem revelar muitas coisas. No litoral, análises de resíduos orgânicos preservados em fragmentos cerâmicos utilizando as técnicas de cromatografia gasosa (GC) e espectrometria de massas (MS) indicaram a presença preponderante de lipídios de origem animal (gorduras) em relação aos lipídeos de origem vegetal (ceras epicuticulares e resinas). Por outro lado, os lipídeos de origem marinha predominavam sobre os lipídeos de origem terrestre indicando que as cerâmicas estavam sendo utilizadas muito mais para o preparo de alimentos fornecidos pelo mar do que pela terra (para saber mais sobre este tema interessante sugerimos a leitura do artigo de Fabricio Augusto Hansel e colaboradores.

Foi também a partir do material cerâmico que arqueólogos registraram resíduos de grãos de amido e de fitólitos, indicando que grupos Jê habitantes do planalto catarinense consumiam plantas como a mandioca, o milho, a abóbora e o feijão, as quais poderiam estar sendo cultivadas sistematicamente. As informações sobre a dieta consideram ainda a caça, a pesca e o intenso consumo de pinhão, sugerindo uma ampla diversidade alimentar.

Pesquisas paleoecológicas baseadas no registro de pólen e amostras de carvão indicaram que a floresta de Araucária se expandiu rapidamente sobre os campos de altitude do planalto do sul do Brasil há cerca de mil anos, processo oriundo de mudanças climáticas e possivelmente influenciado pelo manejo dos grupos Jê meridionais sobre o ambiente para torná-lo mais produtivo.

Neste período se observou uma série de transformações culturais na forma desses grupos ocuparem a paisagem e nas práticas de sepultar seus mortos. Começam a aparecer com maior frequência e diversidade sítios arqueológicos constituídos por agrupamentos espacialmente planejados de estruturas subterrâneas, aterros anelares e montículos funerários, além de sítios litocerâmicos a céu aberto e de arte rupestre. Percebe-se uma especial atenção à implantação topográfica dos aterros anelares e montículos funerários, posicionados em locais de grande visibilidade, por vezes alinhados com outros assentamentos, sendo assim interpretados como locais cerimoniais. Mapeamentos detalhados de agrupamentos de estruturas subterrâneas sugerem aldeias projetadas com evidências de terraceamento e rotas de deslocamento interno. A organização destes diferentes sítios sugere a presença de comunidades locais e adensamento populacional, possivelmente estruturadas em nível regional.

Deste modo, podemos pensar em um sistema de assentamento que integrava distintos ambientes e paisagens do Brasil meridional. Este sistema de assentamento poderia estar relacionado a redes de intercâmbio, laços de parentesco e de aliança, crenças, enfim, variadas possibilidades que ultrapassam a interpretação atual em relação à cultura dos Jê do sul.

Por volta de 700 AP, grupos Guarani iniciam seu processo de expansão para o litoral. As pesquisas arqueológicas indicam que a partir deste momento os grupos Jê começam a se deslocar do litoral para áreas mais interioranas, incluindo territórios próximos à costa.

Essas formas de ocupação do território persistiram por séculos. O contato com os europeus a partir de 500 anos atrás trouxe novas mudanças, pressões e conflitos, cenário que paulatinamente gerou a desorganização da forma tradicional de subsistência e uma redução populacional dos grupos Jê meridionais. A história da resistência de seus descendentes, povos Kaingang e Laklãnõ–Xokleng, prossegue durante o período histórico até os dias atuais, em busca do reconhecimento de seus territórios tradicionais, de seus direitos e de manter viva sua cultura.

 

Para saber mais:

CORTELETTI, RAFAEL. Projeto Arqueológico Alto Canoas – PARACA: um estudo da presença Jê no planalto catarinense. Tese (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Arqueologia, MAE/USP. 2012

HANSEL, FABRÍCIO AUGUSTO et al. Arqueologia biomolecular: passos preliminares para interpretações sobre a origem dos resíduos orgânicos preservados em fragmentos de cerâmica pré-colonial no Brasil. Quím. Nova, São Paulo, v. 29, n. 3, p. 422-428, jun. 2006.

IRIARTE, J. BEHLING, H. The expansion of Araucaria forest in the southern Brazilian highlands during the last 4000 years and its implications for the development of the Taquara/Itararé Tradition. Environmental Archaeology. Vol. 12 N. 2. 2007.